Texto de Beth Baldi –
“Um dos primeiros objetivos da escola é preservar os filhos de seus pais.”
Fernando Savater
A frase foi proferida pelo professor e filósofo espanhol que esteve em Porto Alegre, em 26/11/2015, para uma conferência no Fronteiras do Pensamento. Concordo que é bombástica e que cause estranheza, até incômodo, a alguns pais. Mas, se nos dispomos a uma breve reflexão, veremos que ela encerra uma verdade mais profunda do que podemos supor a uma primeira leitura.
Por mais que, como professores, saibamos da importância da identificação e da parceria entre escola e família na condução da educação de crianças e jovens, e que trabalhemos cotidianamente para construí-las (1), nos damos conta de que acontecem somente até certo ponto, já que as funções de uma e de outra instituição são diferentes. Ou seja, por mais que esse elo esteja estabelecido, ele nunca deixa de ser frágil, ainda que seja cuidado e sempre realimentado, pois diante de qualquer situação que não vá tão bem, o primeiro movimento costuma ser de cobranças mútuas.
Assim, compreende-se que os professores que assistiam à fala do convidado tenham recebido esse posicionamento com risos. Talvez pela satisfação de se sentirem compreendidos, para variar, por alguém importante e confiável, em relação a atitudes pelas quais são normalmente questionados, bem como por perceberem um respaldo para sua ideia de que as crianças “perdem” pela superproteção das famílias.
Na posição de familiar, porém, tanto as pessoas daquela plateia como outras que entraram em contato com a ideia posteriormente, talvez tenham rido de nervosas, se é que o fizeram, já que o mais provável é que entendessem a sentença como crítica de um educador à sua postura, e se ressentissem. Uma reação de estranhamento, que se tornou pública, aconteceu, por exemplo, com um pai de três crianças, que não vão à escola desde 2011, o qual vem lutando junto ao STF para ensinar os filhos usando o método de educação familiar. Ao receber da Procuradoria Geral do Estado (PGE-RS) uma petição com a frase de Savater como argumento a favor das crianças frequentarem a escola, se posicionou: “É estranho esse argumento. Coloca em dúvida as famílias que se preocupam com a educação dos filhos.” (2)
Tanto uma como outra reação resultam de uma leitura superficial do sentido da frase e não contribuem para o fortalecimento dessa relação essencial entre escola e família, que, no final, buscam o mesmo: a melhor educação possível para a criança ou o jovem.
Entretanto, se formos um pouco mais fundo na busca de entendimento para essa ideia, veremos que ela tem sustentação na psicanálise, a qual, por sua vez, nos ensina sobre o desenvolvimento do sujeito também através dos rompimentos que ele faz (ou precisa fazer), dos vínculos que constrói com seus pares (ou precisa construir), dos conflitos que necessita viver e dos sofrimentos que tem de superar. Ela aponta para relações não estáveis, que vão além daquelas que a família garante, como é seu papel: as relações estáveis, em que o afeto é incondicional. Acredita que essas relações diferentes das familiares têm de ser construídas dia a dia, em ambientes diversos, aprendendo-se a negociar, a ouvir o outro, a tolerar as diferenças e a ceder no que diz respeito a seus desejos ou concepções, em prol do que seja melhor para todos a cada momento, entre outras capacidades.
Celso Gutfreind, em Narrar, ser mãe, ser pai, se expressa nesse sentido, quando explica:
“Psicologicamente, todo crescimento é uma partida, mescla de perda e ganho. É preciso deixar o país dos pais, o lugar da infância. Hoje se sabe que isso começa no primeiro ano de vida, atinge seu primeiro ápice no terceiro, e o auge (nos melhores casos) ou cúmulo (nos piores), na adolescência. Hoje se sabe que não há rigidez nos calendários, e partir continua pela vida toda.” (2010: 137)
Também o pesquisador e professor argentino Carlos Skliar, que tem várias obras publicadas e uma visão crítica da instituição escolar, nos ajuda a entender o tema, quando declara:
“Família é o pequeno mundo. É preciso o corte para que a criança possa ler outros mundos. A família não pode resolver o que os filhos têm que saber ou não, isso é papel da escola. Há um impasse hoje: oferecer uma multiplicidade à criança ou mantê-la na singularidade familiar? Acredito que se deve optar pela primeira alternativa. A escolha é entre a pequena vida da família e a grande vida na escola.” (anotações de aula com o profº Skliar, na UFRGS, em nov./2015)
Na medida em que as famílias, por mais esclarecidas, letradas e avançadas que se mostrem, acabam sendo absolutamente intolerantes diante do mínimo sofrimento ou frustração de seu filho, tentando impedi-lo de se deparar com qualquer dificuldade, a escola passa a ser um oásis na vida da criança ou do jovem que nela poderá ter alguma liberdade para se relacionar, para vivenciar conflitos normais de sua idade e “se virar”, para buscar e testar suas próprias soluções, para aprender a lidar com seus sentimentos de prazer e frustração e para ampliar sua visão do mundo e das relações que nele ocorrem.
Ou seja, querendo preservar a criança de um possível sofrimento, as famílias acabam, também, privando-a de experiências significativas para seu desenvolvimento intelectual e emocional. Daí a necessidade de reverter a situação e dar às crianças a “possibilidade de se livrarem da influência permanente de seus pais”, através da educação, como diz a citação inicial. Como educadores, defendemos com Fernando Savater, que é função da escola, além de uma formação humanística e uma educação que oportunize conhecimentos e capacidades, o estímulo à dimensão social da educação, esta dimensão simbólica que nos une aos demais:
“A criança está acostumada a viver em um mundo familiar, em um mundo um pouco privado, separado dos outros. Por meio da educação, ela conhecerá os vínculos capazes de uni-la aos outros cidadãos, aos outros países, ao mundo. E esse mundo simbólico no qual os homens vivem se descobre por meio da educação.” (3)
Também como ele, acreditamos que é na escola que crianças e jovens poderão aprender a confiar em si próprios e a construir virtudes essenciais como “coragem para viver”, “generosidade para conviver” e “prudência para sobreviver”, na perspectiva do ensino da ética. (4)
NOTAS:
(1) Sobre o trabalho que desenvolvemos na Escola Projeto sugerimos ver, neste mesmo blog, o texto intitulado “Pais e Escola: por uma interação mais fluída e construtiva”, de 13 de agosto de 2014, pelo link: http://www.editoraprojeto.com.br/2014/08/pais-e-escola-por-uma-interacao-mais-fluida-e-construtiva/
(2) Em reportagem publicada pelo jornal Zero Hora, em 13/11/2015, intitulada “Na justiça para educar em casa”, a qual fala sobre uma família de Gramado que luta no STF para legalizar a situação em se encontram seus filhos que não vão à escola e são ensinados em casa.
(3) Em http://www.fronteiras.com/noticias/pergunta-braskem-fernando-savater-o-valor-de-educar
(4) Pode-se ouvir Savater falando sobre essas três virtudes a serem trabalhadas para o ensino da ética (5min) no link: http://www.fronteiras.com/videos/as-virtudes-no-ensino-da-etica-e-o-valor-da-educacao