Texto de Graça Lima

“toda boa história é, está claro, uma imagem e uma ideia, e quanto mais elas estiverem entremeadas melhor terá sido a solução do problema.”
Henry James

Sou de uma geração que teve acesso ao conhecimento, quase que exclusivamente pela palavra escrita. A leitura fazia parte de nossas vidas e o livro possuía um lugar de destaque na formação e no status do jovem. Minha mãe lia para nós todas as noites. Muito antes de ser alfabetizada, eu lia as histórias contidas nas imagens. Naquela época, a televisão ensaiava os primeiros passos no Brasil e demorou até ela chegar na minha casa. Não havia a fartura de títulos que se tem hoje à disposição das crianças e era comum a figura do vendedor de livros que ia nas casas para vender coleções. Minha mãe comprou para nós a coleção O Mundo da Criança, onde aprendi a ler histórias que estavam nas imagens. Minha imaginação era alimentada pelo que eu podia observar na natureza, pelas ilustrações de livros e revistas e pelo fantástico mundo criado por minha mãe.

Hoje, percebo que estamos num movimento diverso ao de minha geração. A leitura do livro perde espaço para o emaranhado de informação imagética, rápida e superficial. A narrativa de imagens ainda é pouco considerada nos meios da educação. A compreensão dos processos que regem esta forma de discurso imagético se faz necessária para evitar que o indivíduo se torne refém de mensagens visuais. É fundamental conhecer os mecanismos que interagem no processo perceptivo do indivíduo para que não se bloqueie a capacidade de se pensar o que se vê , ou seja, aquilo que se mostra , e aquilo que está implícito e não se vê.

O benefício que o livro, enquanto objeto de arte, traz para a alma humana é uma eterna questão. Para Tolstói, o propósito desta arte foi o de fornecer uma ponte de empatia entre nós e os outros; e para Anaïs Nin, uma forma de exorcizar o seu excesso emocional. Mas o maior feito desta forma de arte pode ser algo que concilia os dois: um canal de empatia em nossa própria psicologia, que nos permite tanto exorcizar quanto compreender melhor nossas emoções. Também se ocuparam do tema o escritor Franz Kafka, em suas cartas para o amigo de infância, o historiador da arte Oskar Pollak (Letters to Friends, Family and Editors, Schocken, 1990), assim como o ilustrador Maurice Sendak em seus manifestos visuais – cartazes sobre a alegria da leitura.

Para o escritor e filósofo Alain de Botton, os livros podem expandir nosso círculo de empatia e inserção fortalecendo vários aspectos da psiquê. Segundo ele, o livro dá acesso a uma gama de emoções e acontecimentos que levaríamos anos, décadas, milênios para tentar experimentar diretamente. A literatura, assim como o cinema, é uma grande simulação da realidade – uma máquina do tempo que nos coloca em infinitas situações, muitas das quais não poderíamos testemunhar diretamente.

Através do livro, podemos observar diferentes pontos de vista, diferentes formas de pensar o espaço imagem e a palavra, ampliando a compreensão de mundo, de vida, de sociedade.

O processo criativo de um artista é resultado de vários outros processos criativos que se somam, através do tempo. Vivemos numa grande rede narrativa e o que nos cabe é, humildemente, adicionar nosso fragmento criativo ao todo que nos alimentou, ao longo da história da arte. Nenhum criador deve achar seu processo como final, e sim entender seu trabalho como soma de mais um ponto na grande trama da criação. Cada contribuição gera caminhos a seguir ou evitar.

Museu_desmiolado

O artista-criador pertence a uma espécie de irmandade, onde os pares se reconhecem independente de tempo e espaço, pois a energia criativa une esse conhecimento que se renova. Ele se beneficia absorvendo conteúdos existentes e os transformando em doação de novos conteúdos.

A ilustração de livros deve estar no espaço da construção de arte. Literatura e artes visuais que se entrelaçam, produzindo narrativas instigantes que envolvam o leitor. A ilustração estabelece uma relação dinâmica com o texto, articulando dois sistemas de linguagens: a verbal e a visual. A passagem nunca será absoluta, em razão das diferenças de cada uma e, sendo assim, a ilustração não tem compromisso de representar tudo o que é colocado no texto. A ilustração deve procurar ampliar no leitor sua capacidade de percepção artística, apresentando-se como uma narrativa imagética e não algo que vem para traduzir, ou substituir a palavra. O trabalho do ilustrador e do escritor devem estar em concordância, assim como um casal numa dança. O ilustrador e o escritor devem fazer seus movimentos criativos, cada qual a seu modo, mas dentro do mesmo compasso narrativo. O ilustrador Luiz armargo comenta que a ideia que se faz da ilustração como explicação ou ornamento parece provir das primeiras acepções da palavra. Pensamos que desenhos tornam um livro mais atraente, principalmente aos olhos infantis. Daí a ideia de que o papel da ilustração seja informar e enfeitar (CAMARGO, 1995: p. 30). Por meio da ilustração, a criança pode criar um mundo novo, um texto novo, onde vivencia a história, imagina cenários e situações, e estabelece relações entre a imagem e a palavra escrita.

A ilustração informa e forma o olhar. Sendo assim, através do trabalho do ilustrador, a criança desenvolve um processo de iniciação estética. Muito além das obviedades de imagens oferecidas pelos atuais meios de comunicação, a ilustração para o livro infantil deve procurar parceria com as linguagens das artes a fim de enriquecer o repertório do jovem leitor.

Um trabalho consciente de ilustração, que não reduz a criança a um universo de empobrecimento cultural, deve se apoiar no universo das artes visuais. Dentro dessa perspectiva gostaria de pontuar o trabalho de alguns ilustradores: Andrés Sandoval, Roger Mello, Fernando Villela e Daniel Bueno – pesquisadores atentos que misturam elementos da cultura nacional com a linguagem dos movimentos de arte contemporânea e tem produzido livros de grande valor estético; Mariana Massarani, que dialoga com Steinberg e Sempé num desenho singelo, bem humorado e de grande identificação com o público infantil; Ciça Fitipaldi com notável pesquisa de elementos de nossas raízes culturais, não perde o rumo do traço experimental e inovador criando narrativas visuais poéticas; Ivan Zigg, misturando música, teatro, literatura e visualidade atinge um resultado que envolve públicos distintos; André Neves, com técnica apurada passeia por temas intimistas ou populares com resultados sensíveis; Gonzalo Cárcamo, o grande mestre das aquarelas, que todo mundo deveria ter o direito e o deleite de ver – uma aula de sensibilidade para os olhos; e nos últimos anos temos visto uma nova leva de de ilustradores utilizando experimentações do desenho contemporâneo: Laura Teixeira, Mariana Zanneti, Manu Maltez, Rebal Bueno, Silvia Amstalden, Andrea Ebert entre outros. Teria um longa lista com variadas categorias de pensadores do objeto livro que fazem dessa construção um processo artístico para a formação do olhar do jovem leitor, mas fica para um próximo texto.
A leitura é feita de muitas pontes, que não só o livro – artes visuais, dança, música, teatro, arquitetura, cinema… enfim toda criação – o mundo está aí para ser absorvido, processado e recontado.

Para finalizar gostaria de citar o trecho abaixo do professor Ivo Lucchesi:

“A compreensão dos mecanismos que regem a imagem se faz necessária para evitar que o indivíduo se torne alvo de controle da grade imaginária. O lugar de sobrevivência do sujeito, no cenário contemporâneo, parece estar determinado pela capacidade de se desenvolver, em maior ou menor grau, a “leitura produtiva” das imagens, sob pena de nada restar-lhe, além da miragem.”

Ver , ler , sentir o livro como arte.

Referências

COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infanti/juvenil. 3a edição refundida e ampliada. São Paulo: Quiron, 1985.
DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
GATTEGNO, Caleb. Vers une culture visuelle: lá télevision au service de l’educacion. Nêuchatel: Delachaux e Niestlé, 1969
KHÉDE, Sonia Salomão. Personagens da literatura infanto-juvenil. São Paulo: Ática, 1986.
LUCCHESI, Ivo. A Cultura do Olhar. Revista “Cadernos 3”, em novembro de 1995, editada pela FACHA (pp. 49-62).
MARTINS, Maria Helena . O que é literatura. São Paulo, Brasiliense, 1980,p 34.
PANOZZO, Neiva Senaide. Literatura Infantil: uma abordagem das qualidades sensíveis e inteligíveis da leitura imagética na escola (Dissertação de mestrado UFRGS/Faculdade de Educação-Porto Alegre, 2001).
Brain pickings – Maria Popova

Ler, além do que é visto.