Texto de Ana Munari –
Costumo sempre pensar, enquanto diante da folha em branco, no gênero através do qual vou expressar-me naquele instante em que procuro as perguntas para fazer a mim mesma – escrever é sempre fazer perguntas. Em grande parte das vezes em que sou impelida a escrever – e o verbo “impelir” cabe bem aqui na voz passiva – o gênero já foi definido: resumo, artigo, ensaio, parecer, ementa, resenha… Embora entenda que para muitas pessoas essa imposição é tortuosa – e para mim o é também algumas vezes – não é difícil imaginarmos o quão insano seria se não tivéssemos essa moldura de antemão. “Aceitam-se trabalhos”, “chamada de trabalhos”, “envie seu texto”… trabalho? texto? Posso desenhar? Que tal uma resenha de “Nós choramos pelo cão tinhoso”, do Ondjaki, em quadrinhos? Uma música sobre Flores artificiais, de Ruffato? Um poema que explique o conceito de autoficção? Quem é que aprendeu na escola a produzir textos multimodais? Desenho é coisa para se fazer na aula de artes, e música, filme, quadrinhos… é coisa muito mais pra ver do que pra fazer.
Para cada efeito que se deseje de um texto, são necessários uma determinada linguagem, uma estratégia, um discurso e, assim, um gênero e um modo de dizer – isso é o que torna viável a comunicação e mesmo a leitura, como uma prática que permite a comunicação. E tanto mais queremos que a interpretação de nosso texto, pelos leitores, esteja próxima daquilo que desejamos dizer, mais essa moldura – linguagem, estratégia, discurso, modo de dizer – deve fechar o texto na linguagem padrão, no discurso objetivo, nas estratégias de coesão e coerência e assim proteger o texto dos excessos de subjetividade e indeterminação, característicos de outros tipos de texto, como os literários.
Pensei nisso ao rever a motivação para essa “coluna” e pensar se aqui cabem crônicas ou ensaios ou resenhas… e ao mesmo tempo perceber que hoje essas molduras têm sido intencionalmente corrompidas pela escrita contemporânea. Exemplos: romances que parecem uma coletânea de contos – como o de Ruffato, já citado; livros de contos que formam um romance – como o Nu de botas, do Antonio Prata; obra que integra conto, poesia, teatro, crônica, como Cal, de José Luís Peixoto; publicidade que conta uma história e nem mostra o produto que supostamente quer vender – procure no Youtube; crônicas multimodais no jornal, como a coluna “Por aí”, da Mariana Kalil, no Caderno Donna. Esses são só alguns exemplos que têm na escrita a linguagem central, porque intermidialidades há muitas…
E então volto, metatextualmente, a este trabalho que aqui e agora escrevo. Coluna? Já foi o tempo em que coluna era justamente um texto em forma de coluna emoldurado pelo espaço do jornal. O caderno PrOA, de Zero Hora dominical, parece ter revitalizado esse conceito, pois embora demarque o espaço de seus colunistas em colunas verticais, ela os formata assimetricamente. É lá que o Antonio Prata escreve sua crônica ou comentário ou fábula ou ensaio ou resenha… quer dizer, o seu texto, cujo gênero depende do que ele quer dizer (gosto do Antonio Prata e gosto de tomar pra mim esses textos que realmente me dizem coisas, porque me perguntam e me deslocam). E então me pergunto se não deveríamos repensar as práticas de leitura e, principalmente, a produção de textos nas escolas. Não seria importante também sempre nos perguntarmos em que tipo de texto cabe melhor aquilo que desejamos dizer, no modo que desejamos dizer e em vista do efeito que desejamos causar? Por exemplo, quando precisamos argumentar sobre determinado assunto, a fim de convencer alguém para tomar uma posição específica sobre ele – reciclar o lixo, digamos – será melhor usarmos a linguagem verbal em uma dissertação ou fazermos um vídeo? Se queremos desenvolver ideias sobre algum conhecimento científico? E se essas ideias precisam ser mostradas a crianças? Se as pessoas que eu desejo convencer sobre a reciclagem do lixo são idosos? Da periferia de um centro urbano? (A imagem explica bem o silêncio, pensei agora, mas Manoel de Barros me contradiz.)
Provavelmente muitas pessoas vão aqui apontar que, sim, muitas vezes o audiovisual é o recurso mais eficiente para convencer – desde para fazer o indivíduo receber o texto até a promoção de sua identificação com esse texto – mas que, ao mesmo tempo, é necessária à nossa civilização que continuemos capazes de nos expressarmos pela linguagem verbal – a oral também, aliás, muitas vezes preterida nas escolas – pois é justamente ela que nos constrói como civilização. Sim, o que seria de nossa sociedade, que se dá em consequência do letramento, se pararmos de nos comunicar através das palavras? Impossível pensar. Por mais que vejamos grandes oradores utilizando o audiovisual como um recurso, pois mais que entendamos o poder da publicidade audiovisual, sem falar no cinema, na música, é impossível pensar em uma sociedade humana que prescinda das palavras.
No entanto, será que realmente precisamos tomar as formas verbais, em seus gêneros, como algo dado, cristalizado, e centrarmos nesses modos de dizer as práticas de produção textual nas escolas? Será que não seria interessante propormos um tema, um receptor e um efeito, e deixarmos livre a escolha do “como”? Depois, esses produtores de texto, então como receptores, podem avaliar aqueles textos que melhor cumpriram sua função. É muito provável que a linguagem verbal seja melhor para muita coisa, e aí sim eles entendam por que tem de aprender a se comunicar com as palavras – para argumentar, defender opiniões, convencer as pessoas e, assim, conquistarem seus espaços, enfim, para ser alguém – que ninguém “é” sem “estar” no mundo. Ou, para fazer aquilo que, na minha opinião, é o que a palavra melhor faz – e que algumas vezes o cinema consegue – que é “silenciar” de um modo muito especial sobre o mundo, sobre o deslumbramento, o choque, o inexplicável, a dúvida… silenciar em palavras… pode?
Por exemplo e por fim: como traduzir isto?
“Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.”
(trecho de “O apanhador de desperdícios”, de Manuel de Barros. In: Memórias Inventadas: A Infância, São Paulo: Planeta, 2003.)