Texto de Ana Munari –
Escrevo sob o impacto de um acontecimento desta última semana de campanha eleitoral: a proibição, pelo TSE à Editora Abril, de fazer publicidade da edição 2397 da Revista Veja, cuja capa estampa a manchete sobre uma declaração do doleiro Youssef sobre o esquema de corrupção da Petrobrás, por denegrir a imagem da candidata à Presidência da República.
Assim que foi veiculada a notícia da liminar, alguns defensores da candidatura petista mostraram-se indignados nas redes sociais, pedindo a retirada da publicação do mercado e chamando seus assinantes e leitores de todos os adjetivos que têm sentido em algo próximo a imbecil em escala menor. Na direção oposta, eleitores do candidato do PSDB saíram às ruas com uma reprodução da capa de declarações duvidosas. Eu poderia fazer aquela referência “nem ao céu”, mas ambas atitudes só me lembram o inferno.
Nas redes sociais, algumas pessoas sugeriram queimar a edição da revista – ato que me evoca uma imagem muito ruim. Eu sou a favor de ler, sempre. Ler e duvidar. Se eu fosse escolher um lema, seria este: “ler e duvidar”; melhor: “ler é duvidar”. E estou falando tanto da leitura de textos jornalísticos, científicos, de conhecimento, quanto da ficção. E, para a frustração dos adeptos da contenda, não vou seguir falando de eleição e barbárie, pois foi sobre isto que o episódio da semana me fez pensar: sobre como a ficção deve conclamar a desconfiança do leitor.
Sim, caro leitor, como diria o desconfiado Machado (sobretudo na pele de Bentinho) ao prever a resposta de seu leitor, ler literatura não seria sobretudo “crer”? Sim, de um lado, é entrar no jogo – e crer que se esteja lidando com um universo possível e mesmo com o acontecido, afinal, a crença no verossímil é a chave para a entrada no universo ficcional, espaço em que devemos imergir para que funcione.
Mas, por outro lado, o leitor de literatura deve desconfiar sempre do texto – no texto como enunciado. E desconfiando é que se duvida. Se falamos em enunciação, é possível dizer que devemos sempre desconfiar daquele que fala, do narrador, esse sujeito parcial e interessado. Claro que há os contadores fabulosos que só querem debulhar – debicar, diria Machado – uma boa história. Mas a esses não há problema em se dar crédito, ninguém sairá ferido ou perderá a saída de uma história dessas. E não estou falando da Carta Capital – santa ingenuidade, Batman. Vou voltar à literatura.
Na primeira aula da disciplina de Oficina de Produção de textos, disse às meninas (sim, tenho uma turma de Letras formada apenas por mulheres) que, mais do que aprender a escrever ficção, ali elas teriam de aprender a “ler” ficção. Para tanto, teriam de perder a ingenuidade diante do texto. Não fiquem em choque aqueles que ainda não perceberam, mas a literatura tem olhos oblíquos e dissimulados. A literatura, essa safada, e quando digo safada quero dizer a da melhor espécie, sem jogo de palavras apesar de Safo, mas aquela que sabe a que veio e só usa saia longa para poder erguer a barra na hora de subir as escadas – donde surge a intermitência: “O lugar mais erótico de um corpo não é lá onde o vestuário se entreabre?”, pergunta-nos Barthes.
Orhan Pamuk, a partir de um ensaio de Schiller sobre a poesia, separa os romancistas entre ingênuos e sentimentais. O romancista ingênuo teria no leitor ingênuo seu ideal: ele quer contar uma história e não reflete sobre a construção estética ou seus reflexos no leitor. Já o sentimental entende a obra como um constructo estético e preocupa-se com a criação em sua complexidade e em sua concretização. Para Pamuk, o leitor não deve nem ignorar o texto como algo engendrado nem colocar o ato criativo como aquém dos próprios significados da história. A narrativa literária tem, assim, seu valor no como diz – a narração – mas também no que diz – a narrativa.
Qualquer um que tenha lido um bom romance é capaz de entender: há histórias que nos captam por sua fábula, outras por seu enredo e linguagem. Algumas vezes entramos na história vivenciando-a como personagens – espectadores ou participantes – e fazemos ouvidos moucos a quem nos conta. Outras vezes, colocamo-nos entre o escritor e o narrador, questionando suas escolhas e estratégias. Agora talvez sim: nem ao céu nem ao inferno. O leitor ingênuo prefere a literatura que não exige uma postura metaliterária, comum nas obras que têm na fábula seu centro. Já os leitores sentimentais preferem eles mesmos encontrar o centro da obra. Para que isso funcione, é claro, o romancista sentimental não pode deixar esse centro exposto, ele precisa mascarar seu constructo.
O escritor que leva a centralidade da metaficção ao extremo esvazia demais a fábula, e o leitor perde a direção. Mas contar uma história sem engendrá-la é negar ao leitor seu direito de duvidar, maquinar, jogar. A desconfiança é sedutora. Os bons leitores não são apenas curiosos, mas têm autoestima suficiente para se permitir desconfiar – a hipótese da traição do texto estimula a libido. No entanto, ao fim e ao cabo (como diria Scliar), o leitor quer conquistar e vencer o jogo depois do desafio.
De nada serve a pureza do leitor diante da literatura, pois ela só se entrega completamente ao licencioso. E sabemos que o desconfiado é aquele que sabe o que é possível – do que a linguagem é capaz. O leitor que desconfia vasculha o texto, investiga, fuxica, fica atento aos indícios. O bom leitor sempre suspeita, e assim descobre as artimanhas do texto. E, ao desvelá-las, descobre que é desejado – descobre a escritura, não é, Barthes?
Que decepção um texto que me julga conquista fácil! Ninguém quer ser enganado, por governos, pelas mídias ou pelas pessoas. Mas aquelas histórias que nos enganam e, ao final, nos surpreendem e superam nossas expectativas, merecem nosso perdão. Fazem-nos mais atentos e desconfiados e, o melhor, nos jogam para os braços alheios, neste caso, para um novo amor, o próximo livro em nossas mãos. Desconfiemos! Mas apenas de quem nos merece, caros leitores – e eleitores.