Esta carta a seguir foi escrita e postada no Facebook pelo Emiliano, no dia 20/2, uma semana depois do falecimento do pai dele, o nosso querido escritor Carlos Urbim (1948-2015). É um documento muito amoroso e emocionante. Ao publicar aqui no Blog da Editora – com a permissão do Emiliano, claro -, achamos que seria também uma forma de registrarmos publicamente o nosso eterno carinho por esse autor e sua obra.

Pai,

Tô com umas ideias aqui, para um texto. De repente tu pode me ajudar.

Pensei em fazer assim, como se fosse uma carta pra ti. Primeiro, achei saudável. Depois, esquizofrênico. Fazer de conta de que tu estava vivo estava me deixando mais triste do que aceitar tua morte. Agora, acho que tem que ser do jeito que vier.

Gostaria de começar com uma frase de efeito, dessas pensadas no banho. “Meu pai era daltônico, mas quem não enxergava direito era eu: não via o quanto ele era especial.” Não é totalmente verdade, sempre reconheci teus méritos. Mas também não é totalmente mentira. Estar mais próximo sempre tornou meu olhar mais crítico. Queria que tu escrevesse livros maiores, melhores. Bobagem. O que é maior e melhor do que escrever o que se quer, quando quiser?

Se tu soubesse de todo o carinho que recebemos. De poemas a abraços, de colunas a recados. Como disse um autor da minha e da tua estante: “Qualquer amor é um pouquinho de saúde, um descanso da loucura”.

Queria falar da loucura que é a diferença entre Carlos Urbim e o meu pai. O autor consagrado, do obituário em jornal, das autoridades no velório, das tantas homenagens. E o Seu Carlos regando as plantas da frente e dos fundos, assistindo Canal Brasil, secando as mãos com papel toalha, embolando e guardando no bolso. Achei um desses papeis ontem, quando vesti uma bermuda tua.

Anteontem, fuçando tua biblioteca, achei um presente que tu esqueceu de me dar. No livro “Assim se escreve um conto”, o autor argentino Mempo Giardinelli escreveu: “Para Emiliano Urbim, aprendiz de escritor, hijo de mi amigo Carlos! Abrazo! Mempo – Chaco, Sep. 97”. Doi não poder te ligar pra ter certeza, mas acho que o Mempo (lembrei tua voz grossa e pausada: “Mem-po”) não estava na província do Chaco quando deu o autógrafo. Talvez ele seja como tu: a cabeça sempre no lugar onde nasceu.

Na tua cabeça, em 1997, eu era “aprendiz de escritor” – ou isso não teria ido parar no autógrafo. Desculpe não corresponder ao teu entusiasmo. Um entusiasmo colossal, caudaloso, inesgotável. Uma Itaipu de elogios. O Glauco aprendia a, sei lá, mudar o canal da TV no videocassete: “Mas é um gênio da eletrônica!”. Chegava suado da educação física: “Um atleta!” Falar estações do ano em inglês: “Tem que ser diplomata!” A mais engraçada foi quando fiz aula de um programa de animação, mostrei o que tinha feito e tu largou: “É um Hans Donner!” E chorava.

Também choro por qualquer coisa – por coisas que meu filho faz, inclusive. Também tenho insônia, unhas que fazem a curva do dedo, espirros espalhafatosos. Também sou canhoto, durmo do lado esquerdo da cama, odeio dirigir na cidade e amo pegar estrada. Também gosto mais de letra de música do que de música. Por sorte tu viveu tempo suficiente para que eu te contasse dessas semelhanças. Virão muitas mais.

Calçadão de Ipanema, o de Porto Alegre mesmo, 28 de dezembro de 2002. Descobri no calendário do Windows que foi um sábado. (Tu diria: “Ás da informática!”) Naquela tarde ensolarada, a mãe tirou a foto que eu escolhi para este texto. É de quando eu comecei a ver o quanto tu era legal. Não precisava mais me revoltar para amadurecer. Em setembro daquele ano, eu tinha ido pra São Paulo, trabalhar na Folha, era um homem feito. (Ouvi tua gargalhada.) Eu ainda raspava o cabelo, tu ainda fumava.

Sempre me admirei de como tu parou de fumar de um dia pro outro, depois de uma úlcera. E se, em outro universo, tu tivesse parado antes? Em 29 de dezembro de 2002, um domingo? Será que ia ler essa carta? Adianta perguntar?

Enfim. São umas ideias aí. O normal seria te mandar, aguardar teus comentários, publicar depois. O normal não é mais possível. Fazer o quê? Surge um novo normal. Responde quando der.

Beijo. Saudades. Até.

Emi

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