Texto de Annete Baldi –
Ontem estive no Colégio João Paulo I, aqui de Porto Alegre, para falar com um simpático grupo de professores e pais, dentro da programação da Feira do Livro da escola. Comecei a conversa trazendo o depoimento de alguns autores da Projeto a respeito da importância da leitura (para visualizar o arquivo em PDF, clique aqui).
E a seguir iniciei o depoimento da minha relação com a leitura, citando este trecho do meu livro favorito:
“A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe.” Grande Sertão Veredas, p.82
… e me permiti voltar no tempo: fui lá para o ano de 1974.
Eu estudava na 4ª série do Colégio Anglo Latino, em São Paulo. A professora de português chamava-se Maria Helena, e em sua aula usávamos um livro didático que infelizmente a minha mãe não guardou. Naquele livro havia um poema que é dos poucos que lembro de cor até hoje:
Cidadezinha cheia de graça
Tão pequenina que até causa dó
Com seus burricos a pastar na praça,
Com sua igrejinha de uma torre só
Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca, nenhum segundo
E fica a torre sobre as velhas casas
Fica cismando como é vasto o mundo
Eu que de longe venho perdido,
Sem pouso fixo (que triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!
Lá toda a vida poder morar!
Cidadezinha… Tão pequenina
Que toda cabe num só olhar…
Sabe-se lá por que eu lembro de uma forma tão especial apenas desse poema e mais nada daquele livro… Eu, que era uma criança de 10 anos nascida na pequena Porto Alegre e morando na grande São Paulo. Porto Alegre, cidade do autor do poema referido, o Mario Quintana. Sabe-se lá por que eu lembro…
Também lembro que a minha irmã mais velha costumava me dar livros de presente. E eu lia as histórias sob forte impacto de emoções que ainda nem sabia nomear por certo e que se misturavam às emoções daquelas outras crianças/jovens que narravam os seus dramas naqueles livros: O menino do dedo verde, O meu pé de laranja lima, Oliver Twist, As mulherzinhas, Coração de vidro.
Um pouco mais adiante no tempo, já adolescente e um pouco mais habilitada a entender que as emoções que surgiam através da leitura tinham a ver com a minha identificação com alguns personagens e com algumas experiências já vividas (ou desejadas), li quase todos os livros da linda coleção de capa dura e cor de vinho do Erico Verissimo que havia sido adquirida para toda a família por essa mesma irmã que gostava de me dar livros de presente: Clarissa, Caminhos cruzados, Música ao longe, Olhai os lírios do campo, O resto é silêncio, O tempo e o vento.
No curso de Magistério, lembro de me divertir especialmente com Simões Lopes Neto e Machado de Assis, através de contos que eram depois de lidos interpretados por nossos grupos de teatro superamador, já encontrando nesses textos outras formas de apreciação: a linguagem tão rica e a forma peculiar de contar uma história!
Depois passei por um curso de Graduação em Letras e por um Mestrado em Literatura, duas épocas em que li muitos livros, conheci novos autores e revisitei outros tantos. E como resultado eu tenho hoje uma razoável biblioteca em casa. Gosto de passar os olhos pelas lombadas dos livros ao longo das estantes espalhadas pela sala de vez em quando e ficar me testando sobre o que lembro de um ou outro livro. Nem sempre passo nesses autotestes, para a indignação do meu filho de 17 anos, a quem revelei tal fato. “Mas como assim tu não te lembras das histórias? Então pra que ler tanto?” questionou.
Pois essas são duas ótimas perguntas! Claro que existem pessoas com melhores memórias que são capazes de recontar com muitos detalhes as histórias que já leram. Mas as pessoas em geral não são desse tipo, e eu me enquadro nesse grupo dos que “precisam esquecer para ter mais espaço de lembrar” (1). Realmente, hoje eu não me lembro mais de todas as tramas das histórias que eu já li. Não sei mais o nome de todos os personagens e lugares, quem casou com quem ou qual a causa da morte de uns e outros. E talvez se eu tivesse seguido a outra vertente profissional da minha formação e tivesse me tornado professora de literatura eu deveria, sim, lembrar de todos os enredos porque seria o meu instrumental do trabalho. De qualquer modo, estou convencida de que é do processo de leitura que se retiram os fragmentos que vão se unindo para formar o tecido intelectual (e afetivo) de que somos feitos. Acredito que o que realmente conta – mais do que os quens, os quandos, os comos e os ondes – é a experiência emocional e psíquica que a leitura nos proporciona.
“Porque aprender-a-viver é que é o viver mesmo.” (GSV, p.518)
A “leitura” tem diferentes sentidos. O mais específico refere-se à decifração do código escrito que geralmente se dá na infância, na fase da alfabetização escolar. O sentido mais amplo refere-se à interpretação de mundo. Entre um processo que é mais objetivo e outro mais subjetivo se dá a formação durante esses 16 anos que passamos na escola. E por isso espera-se que após quatro anos de educação infantil, nove anos de ensino fundamental e três anos de ensino médio um aluno saiba ler um texto e possa entender o que lê e saiba também decifrar o que vê e o que escuta em seu dia a dia, se bem que esse processo de ler o mundo não encerra jamais, pois estamos sempre aprendendo a decifrá-lo.
Dirijo a editora Projeto há 22 anos. A mesma paixão pelos livros e pela leitura que nos mobilizou, minhas sócias e eu, a abrir uma editora ainda hoje é a mesma que dá energia para cada novo livro que publicamos. Mas devo confessar que algo mudou. Por muito tempo “comprei e revendi” a ideia de que a literatura é uma entidade quase transcendental que não pode estar associada a nenhum tipo de utilitarismo (“literatura” é bem diferente de “autoajuda”!). E acho mesmo que essa ideia faz bastante sentido quando aplicada ao mercado da literatura infantil e juvenil que nasceu com o vínculo muito estrito à escola. Explico: algumas editoras aproveitam-se desse aspecto inerente ao nicho e publicam livros muito ruins para crianças e jovens, literariamente falando, com propósitos quase exclusivamente pedagogizantes, ou seja: colocam a literatura a serviço de ensinamentos escolares e morais. São textos com clara função didática disfarçados de literatura. Sou contra essa linha, claro. E a ideia que eu revi nos últimos tempos, devido a algumas leituras com um viés mais psicanalítico, ou mesmo por conversas, artigos e palestras que acompanho de alguns especialistas (em particular um texto recente da Susana Ventura!) foi a minha resposta para a pergunta “para que serve a leitura da literatura”. Até alguns anos atrás, eu responderia sem hesitar que literatura não pode servir para nada, ora essa, pois é uma forma de arte e arte não precisa servir para nada. É apenas para o deleite. Pois hoje eu respondo assim: a literatura serve basicamente para tornar a nossa vida melhor, pois nos coloca a viver outras vidas. (2)
Desde que somos pequenos, ouvimos as histórias maravilhosas e com elas aprendemos que o “era uma vez” é capaz de nos transportar para uma outra dimensão onde somos capazes de sentir a emoção de atos heróicos ou de suportar a dor de sofrimentos terríveis até que o “viveram felizes para sempre” nos traz de volta à realidade.
Esse passe de entrada e saída para o mundo da fantasia que nos é dado quando pequenos nos habilita para as outras experiências de leitura que virão mais adiante e tornará possível o pacto com os autores que escolhermos ler. Nos será possível “suspender a descrença” diante de um texto literário, ou seja, seremos capazes de aceitar como verdadeiras as premissas de uma narrativa ficcional, mesmo que elas sejam fantásticas, impossíveis ou até contraditórias. Seremos capazes de suspender o nosso julgamento por um dado tempo, mesmo que seja somente enquanto dura o livro (a peça ou o filme).
A literatura (assim como o teatro e o cinema) oferece ao homem “a oportunidade de sentir as emoções de um marinheiro, de uma prostituta ou de guerreiro”, nos colocando dentro de outras peles. É o que ouvi uma vez do saudoso amigo (dramaturgo e romancista) Alcione Araújo, quando se referiu à “verdade das mentiras”.
E é também ao que Fernando Pessoa se refere no poema “Autopsicografia”:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
Por certo, a leitura do texto literário serve para nos ajudar a entender a nossa “travessia” porque nos faz viver essas outras vidas que não são as nossas de verdade e essas experiências vão nos ajudando a revelar a dimensão do que é a vida e o ser humano, oferecendo-nos ao mesmo tempo “contraponto e complemento ao vivido” (2).
Sobre essa questão do “para que serve?” ainda gostaria de relatar um fato interessante que até virou livro… Há quatro anos atrás, a nossa editora promoveu um encontro em São Paulo que reuniu os nossos representantes comerciais dos diversos estados e alguns autores foram convidados a participar do evento. Ao querido Celso Gutfreind (nosso autor de O caminho do pintor e O boto do arroto), coube preparar a fala encomendada para o encerramento do nosso encontro, após dois dias de trabalho, cujo título era justamente: “Afinal, para que literatura?”.
Na sua fala, ele fez um relato de sua trajetória pessoal e profissional para responder a questão. Lá pelas tantas ele disse: “Eis o paradoxo. Não podemos estar fora da realidade, mas sem a imaginação não a suportaríamos.” E esse texto escrito especialmente para aquele evento virou a apresentação de um livro que ele publicou no início deste ano pela Artmed, chamado A infância através do espelho, leitura que recomendo aos pais e professores. (E eu, que havia ficado extremamente agradecida pelo resultado da fala do Celso em nosso evento, acabei ainda ganhando um agradecimento muito bonito de surpresa neste ano!)
Recentemente, acompanhei o meu filho em uma atividade na ESPM para vestibulandos e seus pais durante uma manhã de sábado. No momento final, enquanto os alunos participavam de uma oficina, os pais foram convidados a assistir a palestra do psicanalista João Ribeiro, que abordou importantes questões sobre as relações afetivas, a convivência familiar e os dramas pelos quais os jovens passam no momento da escolha profissional. Foi uma das melhores conversas de que participei em ambiente escolar nos últimos tempos. Entre outros assuntos, Ribeiro lembrou que os nossos filhos adolescentes têm que lidar com a insegurança da vida, com as contradições humanas, pois “vivemos com uma pluralidade dentro de nós”. Claro que eu associei o tema daquela conversa com essa outra aqui.
“Acho que eu não era capaz de ser uma coisa só o tempo todo.” (GSV, p.414)
E a leitura da literatura pode ser uma ótima forma de exercitar o olhar sobre essas contradições, as nossas e as dos outros. A maturidade dos nossos filhos e alunos virá com o entendimento de que essas contradições são inerentes à vida, à nossa travessia.
“E, o que era que eu queria? Ah! Acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo.” (GSV, p.370)
(1) Gutfreind, Celso. A infância através do espelho. Artmed, Porto Alegre, 2014.
(2) Ventura, Susana. http://blognovaalexandria.blogspot.com.br/2014/08/coluna-brasis-portugais-e-africas-serve.html