Texto de Ana Munari –
Apropriação cultural. Essa foi a expressão que eu li em algumas manchetes pela internet no início deste mês de março. É como estão chamando o crime cometido por J. K. Rowling, acusando-a de apropriar-se da cultura indígena estadunidense em postagens em seu site, o Pottermore.
Para quem não conhece, Pottermore é um portal de extensão do universo de Harry Potter, espaço que a autora utiliza para manter seus leitores conectados à diegese ficcional da série e também para conquistar novos leitores, sobretudo entre esta geração que busca a ficção nas telas do computador e da tevê. A mensagem inicial diz “Welcome to the digital heart of the Wizarding World, packed with exclusive writing, news, features and surprises.”(Bem-vindo ao coração digital do mundo mágico, repleto de histórias exclusivas, novidades, reportagens e surpresas). Nas boas vindas da própria autora, que você pode escutar ao entrar na página, ela chama o portal de “seu canto mágico” e fala em novos personagens, histórias e lugares, convidando os internautas a “soltarem sua imaginação” – “unleash your imagination”, imperativo que centraliza a ideia do Fanfction.net, site criado por fãs e para os fãs, onde os leitores publicavam suas próprias histórias da série, as fanfictions. Soltar a imaginação é o que tem feito a Jo desde os anos 90, quando criou esse gigantesco universo (para saber mais sobre isso, posso sugerir meu livro? É gratuito e está aqui.).
Rowling já foi acusada de plágio por uma escritora estadunidense, mas perdeu a causa. Além disso, muitos leitores encontraram semelhanças entre as histórias de Harry e livros anteriormente publicados, como os de Diana Wynne, Jane Yolen e até Neil Gaiman, inclusive os próprios autores têm-se referido a essas coincidências entre personagens, nomes e lugares e mesmo entre os dramas e ações que envolvem as histórias. Uma história de um adolescente diferente que certo dia descobre sua turma não é realmente muita novidade! Agora preencha esse argumento com “imaginação”. Resta que Potter e mesmo Harry (ou Larry) são nomes comuns – Jo já contou que Potter é uma homenagem à escritora Beatrix Potter -, histórias de bruxos sempre envolvem magia e criaturas estranhas, a Inglaterra tem castelos e trens, e adolescentes vão para a escola.
Na segunda semana de março deste ano, Jo começou a publicar no Pottermore textos nos quais ela fala sobre a magia nos Estados Unidos à época da colonização da América pelos europeus. Até agora foram publicados quatro textos em que, diacronicamente, são apontados alguns fatos importantes da história do mundo mágico entre os séculos XIV e os anos 1920 na América do Norte – diga-se Estados Unidos, pois o texto não cita nem Canadá nem México e, aliás, começa falando do Novo Mundo, a América, embora fique restrito aos Estados Unidos, já que fala da jurisdição da MACUSA e da Escola de Ilvermorny. Um dos fatos citados, por exemplo, é o julgamento das bruxas de Salem, em 1692.
A apropriação cultural, segundo sobretudo alguns estadunidenses que se manifestaram, tem sentido na tomada de uma das lendas do povo Navajo como elemento da narrativa, por Rowling, que a adapta para o contexto do mundo bruxo. A lenda diz respeito ao poder de alguns xamãs de, ao se vestirem com peles de animais, transformarem-se nesses animais. No universo potteriano, esses xamãs seriam como os animagos e, muitas vezes, usariam a transformação para se esconderem dos inimigos ou caçar. Rumores de que esse poder teria sido conquistado à custa de assassinatos teriam surgido a partir de xamãs no-majs – muggles em inglês norte-americano (sim!).
J. K. Rowling ainda não se manifestou e eu imagino que ela deve estar pensando muito em como vai dar seguimento à história sem colocar mais lenha nessa fogueira – no duplo sentido, pensando em Salem. Se formos acusar escritores de apropriação cultural, é melhor pararmos de fazer tudo que estamos fazendo, porque será um longo e demorado processo, para não dizer impossível. O que é a intertextualidade se não uma apropriação? No entanto, esse caso tem uma peculiaridade, não apenas porque mexeu com uma narrativa cultural relacionada às crenças de um povo – pode-se pensar mesmo em religião – mas porque envolve as velhas questões do pós-colonialismo: uma voz do velho mundo querendo contar a história do novo mundo a partir de sua visão (que é a do conquistador). Isso tem sentido tanto na diegese ficcional – Rowling vai ter de contar essa história com todo cuidado – como no mundo do lado de cá, onde e quando discursos identitários e religiosos estão sempre “sub judice”.
O que Rowling fez foi realmente se apropriar de um elemento cultural e colocá-lo como esquema de seu próprio texto – um crime? -, mas ela foi desde o início, como chama Jenkins, uma textual poacher (uma caçadora de textos), que misturou elementos de várias mitologias e culturas, muitas vezes traçando paralelos entre elas e a realidade cá fora, mesmo que de forma subliminar, por exemplo, entre sangue-puro e raça ariana.
Não é a primeira apropriação da lenda Navajo para “fins ficcionais”, já que os irmãos Winchester já andaram caçando skin-walkers por aí. É que eles são de Kansas?
Quando eu comecei a ler A história da Magia na América do Norte, no Pottermore, fiquei incomodada e foram poucas as linhas transcorridas para entender por quê. É que Jo não está nos contando uma história, como sempre fez, está apontando dados que se relacionam com o passado de uma narrativa de que ela contou apenas uma pequeníssima parte. A imaginação está muito solta ainda, e eu sinto que ela ainda tem muito para contar. Me encanta imaginar, na verdade, que aquilo são seus apontamentos para o que vem por aí. Mesmo em inglês (a tradução tem, como sempre, coisas esquisitas) o texto é frio e quase acadêmico, embora o terceiro nos lance um sopro da Jo contadora, com a história da pobre Dorcas.
É difícil julgar se está errado que alguém se aproprie de um elemento cultural e molde a história a seu modo quando não é a nossa cultura que está no caldeirão. Mas para mim ficção é ficção – e a literatura é geneticamente intertextual, uma usurpadora nata. A inverossimilhança, essa sim, pode destruir uma boa história, e a danada pode vir do leitor, quando ele teima em pensar em “verdade, realidade”. Não é o caso, pois eu acho que Jo sabe amarrar histórias muito bem. Mas… caiu a varinha aqui. Por que no-maj só agora se os nativos estadunidenses, antes da colonização pelos europeus, já usavam esse termo para os não mágicos? Se os ingleses impuseram muggle, a palavra não deveria ser autóctone, por exemplo, navajo? Está aí o aporte para aqueles que querem, mesmo, falar de apropriação cultural e não de mercado cultural.