Caio Riter, escritor –
No princípio, era o verbo. Mas não só.
A palavra é vital. Sem ela, não nos construímos como seres históricos, não nos percebemos gente. Por meio da nominação, é que a concretude se faz; por meio da verbalização, é que nos tornamos senhores de nós mesmos; por meio da escrita, é que buscamos formas para entender o mundo, o outro e nós mesmos.
Escrevo por que as palavras me são caras. Escrevo porque em minha pré-história de leitor tive uma mãe que contava histórias, que brincava com as palavras, por meio de adivinhas, de travalínguas, de canções, e que me alfabetizou na necessidade de apreender o mundo tendo as palavras como arma, como recurso.
Escrevo por sentir o verbo pulsando e pulsante em mim, no entendimento de que as palavras são mais do que apenas conteúdo semântico: são ritmo, são som, são ludus, são possibilidade de fantasia e de imaginário, são registro de memória, são construção imagética.
Escrevo porque creio (embora haja discursos contrários a este meu pensamento) que a palavra compromete: ela nos insere na vida e nos obriga a ter lado, a tomar partido, a construir uma realidade outra à medida em que a ficção (ou a poesia) volta seu olhar sobre o ontem, sobre o hoje, e futura amanhãs. O escritor é um ser do seu tempo. E ao versar sobre sua aldeia, versará sobre questões existenciais que se curvam sobre o próprio ato de saber-se humano. O escritor é ser de pontes. Se não se sabe bom engenheiro na construção de caminhos sobre os abismos que separam autor e leitor, individual e coletivo, não será efetivamente um ser de palavras.
E é isso o que busco. Ser escritor, fazer parte do mundo em que vivo, ser ponte ao encontro de mais e mais corações leitores.
Todavia, quando me pensei ser de escrita, houve premeditações, mas também acidentes. Acidentes daqueles bons, as tais surpresas que o próprio ato da escrita promove. Ou a vida, talvez. O fato é que minha escrita acabou por se voltar, com maior propriedade, aos leitores iniciantes: crianças e jovens. Uma produção que, muitas vezes, é vista como menor, como fácil ou facilitadora. Produção, no entanto, extremamente necessária quando se pensa que atua sobre leitores primeiros. Leitores que, por experiência própria, são mais verdadeiros no seu sentir. Assim, fui colhendo emoções, fui estabelecendo laços, fui me construindo como escritor. Isso tudo, mergulhado no universo mágico do “Era uma vez…” e sempre construindo a certeza de que escrever desconhece rótulos. O bom livro para crianças, já apregoou Orígenes Lessa, é aquele que é lido por adultos com prazer. Ou ainda, como disse Drummond, “O gênero literatura infantil tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá música infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária deixa de constituir alimento para o espírito da criança ou do jovem e se dirige ao espirito adulto? Qual o bom livro para crianças que não seja lido com interesse pelo homem feito? Observados alguns cuidados de linguagem e de decência, a distinção preconceituosa se desfaz” O poeta, que assim como outros cânones da literatura brasileira, também arquitetou palavras, também criou mundos, com o objetivo de conquistar corações infantis.
O escritor que tece universos para a infância ou para a adolescência também conversa com o coração da humanidade, independente de idade ou de outra qualquer limitação.
A trajetória de um escritor é feita de opções e de acidentes, as tais inesperanças de que eu falava antes: algo ocorre sem que seja premeditado. Eu mesmo desejando ser escritor para adultos, tornando-me autor para a infância e para a adolescência.
Mas nem só.
E, hoje, minha história é acrescida por mais um degrau, por mais um episódio, torno-me acadêmico desta centenária instituição, que, com certeza, tantos era uma vez… teve e tantos outros terá, espero que com minha participação. Ser acolhido para ocupar a cadeira de número 4, cujo patrono é Gaspar Silveira Martins, é motivo de alegria para mim.
Era uma vez um garoto, chamado Gaspar, natural de Cerro Largo, que, ao entrar na escola e ser inquirido por seu professor sobre o que gostaria de ser quando crescesse, respondeu assim: “Ministro de Estado”. E o foi. Aos 44 anos. Possuidor de uma imensa capacidade oratória, construiu sua trajetória política, produzindo discursos inflamados e tornando-se deputado, senador, sendo ainda, além de ministro, presidente da província do Rio Grande do Sul em 1889. Homem de visão política, pessoa preocupada com certos comportamentos discriminatórios, demitiu-se, em 1873, do Ministério da Fazenda, por não aceitar um projeto do governo que não concedia o direito ao voto para pessoas não católicas.
Excelente contador de histórias, era comum Gaspar Silveira Martins reunir plateia à sua volta no contar de causos gaúchos, além das suas próprias histórias de infância, recolhidas na memória de um tempo em que ainda usava calças curtas e galopava livre pelo campo. Dizem que as narrava com ímpeto, com verve de contador, usando os recursos naturais de voz e gestos.
Conta Lafaiete Pereira, que quando criança ouvia as histórias de Gaspar, que “Silveira Martins não contava essas histórias só para mim, contava-as para a gente grande, mas em tal linguagem, com tal poder descritivo, que não eram só as crianças, mas até os criados que paravam o serviço para ouvi-lo”. Percebe-se, então, que o patrono da cadeira 4 era homem de grande ações políticas, de fortes discursos, ora republicanos, ora monarquistas, mas também era pessoa de palavra contada, de histórias de boca, que não tinha outra finalidade a não ser encantar a plateia. Descobrir esta nuance do patrono da cadeira que passo a ocupar foi maior encanto no estudo da história e da trajetória de Silveira Martins, que faleceu em 1901, aos 66 anos, no Uruguai, país no qual se exilou após abandonar a vida política.
Percebemos, pois, que palavra constrói universos outros; é ela que nos revela o distinto, é ela que nos permite perceber o altero. Assim, o leitor, por meio dos universos ficcionais, tem a possibilidade de entender o outro, de se solidarizar com o outro. Palavra como condição para a comunhão. Palavra como escrita e como dom da oratória. Palavra como aproximação.
Era uma vez também outro gaúcho, nascido em Bagé, em 1924.
Jovem ainda, Paulo acompanhava pelo Jornal do Comércio os discursos dos parlamentares e os pareceres das comissões. Assim foi se envolvendo com aquilo que se tornaria sua própria vida: a política. Jurista, político e advogado, Paulo Brossard ocupou também, até 2015, ano de sua morte, a cadeira 4 desta Academia.
Paulo Brossard desempenhou várias atividades no cenário político, e foi voz contundente e atuante nos anos de chumbo do governo de exceção. Em 1974, elegeu-se senador pelo Rio Grande do Sul, catalisando o sentimento de oposição ao regime então instaurado. Sua fala era forte, incisiva na defesa da cidadania. Nesta disputa com Nestor Jost, candidato do governo, recebeu o apoio de Erico Verissimo, de Chico Buarque e até mesmo do PC do B.
Embora em 1964 estivesse alinhado com aqueles que tomaram o poder, Brossard, com o passar do tempo, tornou-se um crítico das iniquidades perpetradas pelo governo. Dizia que, se estava ali, no Senado, tinha o dever de falar, pois havia milhões de pessoas que não estavam lá e, portanto, não tinham voz. É sabido que a força das palavras do senador gaúcho e sua verve inflamada eram motivo de temor para os governantes. Seus discursos, na linha ciceriana, viraram séries, tais como “É hora de mudar”, que vilipendiou o pacote de medidas propostas pelo governo Geisel, e “Ainda é tempo”, que cobrava pressa na reabertura democrática.
Brossard ainda foi Ministro de Estado, assim como Silveira Martins, sendo, após, indicado para o Supremo Tribunal Federal, onde assumiu a presidência em 1992, aposentando-se da vida política em 1996. Todavia, mesmo nos bastidores, sua palavra fez-se ouvir até seus últimos momentos de vida: um contundente crítico do sistema político nacional, afirmando que a República foi um acidente orquestrado por uma minoria, a fim de se manter no poder. Nada muito díspar do que vivemos hoje.
Experimentamos tempos difíceis como os enfrentados por Paulo Brossard e por tantos brasileiros que lutaram por um Brasil mais pleno, mais livre, mais humano e democrático. Uma instituição que traz em sua história nomes como o de Gaspar Silveira Martins e o de Paulo Brossard precisa, pois, inserir-se também nas discussões a liberdade e a cidadania são ameaçadas. Nós, como artistas, como homens e mulheres da palavra, não podemos, assim como os parnasianos, nos isolarmos em castelos de cristais. O cristal é nobre, mas frágil. Quebra.
A vida pede a palavra; a sociedade carece da palavra.
Quando calamos, somos menos; quando calamos, abrirmos mão do papel social da Arte. E não defendo aqui uma arte engajada partidariamente, mas sim ideologicamente. Não se é, se não se tem consciência de que, ao articularmos o verbo, instituímos novas realidades, novas possibilidade de existir.
A palavra conta, narra, diz de nós e de nosso lugar no mundo.
Falemos.
Escrevamos, pois, a fim de que outros leiam.
Só um novo ser humano — e a construção deste novo ser, tenho certeza, passa pela leitura — poderá construir uma nova sociedade, em que a palavra cidadão seja reinventada e recheada de seu sentido primeiro.
No meu entendimento, torna-se cidadão aquele que possui a capacidade de entender-se e de entender o outro. E, para que isso ocorra, passar pela experiência que a leitura promove é de fundamental importância.
Ler, nessa dimensão, é existir de fato, é tornar-se uno, é construir-se como ser de vontade, de desejo e de sonho. Afinal, ao lermos nos tornamos outro e, de fato, após uma boa leitura, não somos mais os mesmos, não tem como sermos. Mesmo que não nos demos conta, aquelas palavras, em seus arranjos estéticos, promoveram em nós uma mudança, um progresso. Somos outros, não mais os mesmos que abrimos a primeira página do livro. Estes que agora as fecham se modificaram.
E para melhor.
Por isso, escrevo.